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"Vá até a borda do penhasco e pule. Construa tuas asas enquanto estás a cair."

(BRADBURY, 1979)

 

Desde nosso princípio estamos caindo. Caindo para baixo, para cima, para o lado, para o outro. E também para dentro e para fora. Ao existir, estamos a todo momento construindo nossas asas, como indivíduo, como humanidade. E me parece que é assim, desta mesma maneira, que se coloca esse processo de TCC.

 

O que é o TCC? De onde ele vem e o que pretende alcançar? E talvez mais determinante que tudo isso, por onde anseia transitar?

 

Este Trabalho de Conclusão de Curso parte de escolhas. Um caminho de tortura, pois no instante em que estabelecemos perguntas, e às vezes respostas para elas, já nos transformamos em novas perguntas e, ocasionalmente, novas respostas. A tortura de que falo é aquela que nos faz dar voltas, voltas tortuosas de percursos e pensamentos, que nos faz girar e nos leva a outros lugares.

 

Cheguei a acreditar que o trabalho seria a junção de tudo o que sei, tudo o que gosto, tudo o que é bonito, tudo o que é solução. Me perguntando se isso seria TCC, seria eu, seria cada um ou uma tentativa de. Mas um TCC não pode ser tudo, pois é um momento. Um momento de pessoa, um contexto de cidade.

 

É importante manifestar desde já que o resultado deste trabalho não é um produto final propriamente dito, mas um TCC aberto. Apresenta-se como um processo de investigação e de tradução a partir de questionamentos e impressões. Não se trata nem mesmo de um processo conceitual, pois não intenta desenvolver e demonstrar conceitos. Os conceitos aqui presentes apontam direções, revelam dobras e desdobramentos de um percurso no qual a técnica e a experiência seguem no movimento de deixar aparecer, mais do que produzir.

 

“Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar o ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica.”  (CALVINO, 1990)

 

O próprio entendimento de cidade faz parte deste trabalho. A cidade como corpo, como informação. Cidade como cheio de vazios e vazio de cheios, entre presenças e ausências. Cidade em processo, em transformação, tal como as pessoas que nela vivem.

 

Busco então, diante dessa multiplicidade de realidades sobrepostas, tentar entender qual a contribuição do arquiteto no processo de composição dessa sociedade, desse mundo fascinante e ao mesmo tempo tão inumano. Estabelecido em tanta complexidade e contradições. É difícil e provavelmente incoerente firmar [permanentemente] a atribuição do arquiteto, considerando a complexidade e mutabilidade do seu motivo de empenho, a cidade.

 

É a partir dessa investigação e da compreensão de que a cidade contemporânea nos habita e é habitada não somente de forma física, que o som apresenta-se como elemento intermediário entre esse trabalho e a cidade. Numa época em que estamos tão ligados aos estímulos visuais, inclinei-me, como outros já fizeram, a escutar a cidade. Escutar a sonoridade do que nos rodeia.

Diferente da consciência visual que enxerga sempre a frente, o espaço acústico é esférico e não possui contornos ou limites tão demarcados. Ouvimos simultaneamente de todas as partes em uma composição de complexas sobreposições e entrelaçamentos. O som mostra-se como uma oportunidade de um outro ângulo, uma outra forma de espacialidade em arquiteturas que são feitas não somente do que é concreto. Pelo som os espaços transbordam e nos permitem transbordar com eles.

Frequentemente, na participação do processo de pensar e construir a cidade, o que falta ao arquiteto não é ser mais arquiteto, mas, sim, ser mais habitante. Percorrer, escutar e estar sujeito à espacialidade do que lhe compete é parte fundamental em seu ofício. Habitar à cidade e a si mesmo.

 

Projetar é também projetar-se. É se colocar diante, ou dentro, daquele espaço imaginário e criar cheiros, sons, texturas. É construir encontros e demoras. É viver e interferir nesse corpo, que reage e se movimenta. Interferimos e somos interferidos.

 

Considerando que a construção da cidade é também a construção de nossa existência e que a relação com o outro é uma das principais formas de crescimento e de entendimento da realidade, a partilha, mesmo que de nossas indagações, torna-se imprescindível, pois é nela que a experiência reverbera e abre possibilidade de expansão para ambas as partes.

EXPERIÊNCIA

“A cidade faz ruídos diferentes”

(SARA COHEN, 1995)​

 

Houve um tempo em que os sons eram originais. Estavam diretamente ligados a seu ponto de origem e somente ocorriam em determinado tempo e lugar. “A voz humana somente chegava tão longe quanto fosse possível gritar” (SCHAFER, 1977)

Hoje, ouvimos sons amplificados, repetidos, sons familiares e sons de outra parte do mundo. Os equipamentos eletroacústicos permitiram o deslocamento ou separação do som de sua origem. Incontáveis dispositivos separam o som de sua posição original no espaço, encurtando distâncias físicas e sensíveis, fazendo-os viajar pelo mundo em instantes. Por exemplo, o telefone e o rádio permitem vencer distâncias que a voz por si só não alcançaria. Os gravadores também modificam a relação do som em nosso mundo, empacotando-o e liberando-o de seu ponto original no tempo. Esses equipamentos ofereceram a possibilidade de reprodução em diferentes épocas e espaços e também de existirem simultaneamente.

Com a presença de sons mecânicos e elétricos, que foram inundando os espaços da cidade a partir do século XVIII, a sonoridade da vida urbana vai se transformando assim como os conceitos da música. Melodia, harmonia, estrutura rítmica e tonalidade vão tomando novas formas na obra de compositores. Artistas questionam o fechamento das salas de concertos em relação aos ruídos da cidade sugerindo que ambos deveriam fazer parte de uma mesma coisa. Alguns estudiosos sugerem até mesmo que a música deveria adotar o ruído da máquina e da cidade exclusivamente em sua construção enquanto outros se dedicaram a demonstrar que estes se revelavam extremamente prejudiciais à saúde das pessoas.

A vida continua repleta de sons. A cidade ressoa seus habitantes, suas máquinas, os pássaros e o vento. As risadas e as conversas. Os gritos. Soa o carro, o ônibus, a bicicleta. Os sons podem ser um convite para conhecer um lugar. Mesmo à noite, a cidade tem seus ruídos, mas, ao iniciar o dia, vai aos poucos se tornando polifônica. Em alguns bairros a vida acorda mais lentamente, o asfalto molhado soa o sono que ainda resta da noite, mas as ruas vão se enchendo e o barulho de algumas avenidas revela o fluxo de um tráfego insaciável.

A cidade contemporânea apresenta sons naturais, que costumam ter uma existência biológica. Esses sons “nascem, florescem e morrem”, revelando o tempo e senso de duração de seu acontecimento. Também está repleta de sons mecânicos ou elétricos que, conforme sua constituição, permanecem na paisagem por longos períodos de tempo. Em muitos ambientes, a sobreposição de sons contínuos ou dominantes vai construindo uma faixa de ruído que compõe uma paisagem quase uniforme, na qual os sons individuais são soterrados por esse contexto, perdendo-se muitas vezes a perspectiva dos espaços.

Essa amplificação, fragmentação e repetição também pode ser percebida na propagação das imagens. Em outro tempo, o repertório provavelmente era reduzido, construído a partir das experiências e refletidas pela cultura, formando as histórias a partir das memórias em combinações. Hoje, com a saturação de imagens na cidade e nas mídias, com o excesso e complexidade com que as imagens se movimentam, se torna difícil distinguir nossas experiências diretas de imagens nas quais esbarramos os olhos por poucos segundos. Essa sobreposição pode ser interessante a princípio, mas em excesso muitas vezes narcotiza nossa forma de relação com as pessoas e com o espaço. Esse “dilúvio de imagens pré-fabricadas” (CALVINO, 1990) faz da nossa memória um grande depósito, lotado de imagens, a maioria delas aleatórias e irrelevantes, sendo que se tornam quase incapazes de carregar qualquer significado para nós.

Na cidade isso se expressa nas fachadas brilhantes e extremamente coloridas, nos comerciais impositivos e impacientes, na incessante sugestão de produtos e serviços. As pessoas também manifestam em seu comportamento os reflexos desse mundo acelerado. A possibilidade de velocidade traz consigo a necessidade de eficiência e resultado imediato. A agilidade e abundância com que recebemos esses estímulos é sedutora e nos possibilita conhecer coisas e lugares que em outra época seriam inacessíveis. Mas possivelmente converte-se também em exaustão e no decorrente desencanto.

 

Diante disso, nossa experiência vai saltando e atravessando esses distintos e múltiplos fragmentos e nossa compreensão do espaço se constrói como uma cartografia complexa e em constante mutação e, frequentemente, narcotizada por esse excesso escorregadio.

Este trabalho não se desenvolve, de forma alguma, na intenção ou tentativa de apagar todos os ruídos de uma sociedade, até porque suas relações se desenrolam de forma muitas vezes incompreensível. Seria um trabalho irrealizável e provavelmente incoerente.

 

Contudo, apurar nossa audição e estudar outras formas de discutir a cidade, pode ser uma oportunidade de ampliar nosso entendimento de realidade. Oportunidade de repensar nosso modo de ser e de agir nos espaços cotidianos, espaços da cidade onde acontecem os encontros e as trocas e a relação com o outro nos faz crescer. Incorporar positivamente o ruído e o silêncio pode ser uma maneira de revelar ou recombinar algumas camadas que estão abafadas na complexa estrutura de nossos espaços.

SOBRE OS SONS
O TCC
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